segunda-feira, 18 de abril de 2011

***SOMOS O QUE VIVEMOS***


Eu tenho onze irmãos. Por conta disso ouvi inúmeras piadas bobas sobre ter ou não televisão. Meu pai sempre disse que queria ter tido mais três filhos. Não os teve, mas a Juliana, minha sobrinha mais velha, é quase irmã também. Morávamos todos na mesma casa, o que era muito divertido. Lembro do dia que tive a consciência de sermos uma família: eu olhava e dizia “esse também é meu irmão?” e a resposta era sempre “sim, esse também”. Além do pai, da mãe, tive sempre o Tio Luiz por perto. A casa dele era no desnível da rua. Você entrava pela garagem, tinha um lugar que simplesmente chamávamos de “debaixo da área”, o “quarto escuro”, que na verdade era a oficina do meu pai, e a casa do tio. Depois da casa do tio, o quintal dele, um pedaço ao ar livre de cimento e varais, e a horta. Tinha pés de limão, de acerola, temperos,margaridas e rosas. O Plínio e eu costumávamos sentar na árvore, ele tinha um galho e eu outro. A gente ficava ali, encaixadinho, lendo, brincando. Foi na sombra do pé de limoeiro que enterramos nossos animais de infância: tartarugas que não sobreviveram aos cuidados de crianças mais que amorosas, um pintinho chamado Fernando, que por poucos dias foi meu, e uma pintinha chamada Marcela, que a Ju costumava ninar como um bebê. Nunca enterramos a Emengarda, a galinha do Plínio. Há uma lenda que diz que minha mãe a cozinhou. Outra história conta que o fato de ter carne de frango no almoço bem no dia em que a Emengarda sumiu foi coincidência: eis um grande mistério. Na horta tinha também o caramanchão, onde ficava uma velha máquina de costura que havia sido da vó Maria. E tinha o “pantanal”. Quando dizíamos que brincávamos no pantanal, duvido que as crianças que estudavam conosco entendessem. Tempos depois, notei que a minha família tinha um vocabulário próprio, como uma tribo ou uma seita secreta. Comíamos sopa branca ou sopa preta. Guardávamos os remédios num armário na “tecâmera” e cada um tinha sua “parte”. Ora, parte no guardarroupa! Achava incrível quem comia omelete e almôndegas, eu só comia fritaia e porpeta...na nossa casa havia uma torre, como em tantas casas, para abrigar a antena da TV. A torre era um mundo mágico. Lá sentávamos para conversar, olhar além de nossos muros e principalmente fugir da minha mãe, que às vezes precisava ficar brava. Eu era apaixonada pelo mundo dos mais velhos, achava tudo lindo e fascinante. Quando eu tinha nove meses o Anselmo se casou. Casado, foi morar numa casa diferente, vinha visitar a gente. Era muito bacana: na casa dele tinha um abajur que tinha uma base prateada e um líquido com um tanto de mercúrio: logo que ele era aceso, esquentava e mudava de cores, o mercúrio criava formas fantásticas, um delírio para os meus olhos de criança. Foi com ele que fui para a praia pela primeira vez, em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo. Foi nessa viagem que, usando o mais retroverso dos “erres”, disse bem alto enquanto atravessávamos o canal:”Isso que é barrrrrrrrrrrsa???”. Ele mostrava as casas e inventava histórias malucas sobre elas, eu atentíssima, ouvindo tudo. Dizia que era a casa do Mussum, da Gretchen, da Chica Newman e eu adorando tudo. Nessa viagem eu comi frango do mar, já que eu não queria peixe. Comi tudo. De fato era um frango com espinhos, mas acreditei nisso também, de ser frango do mar. Nessa viagem eu dormi muito tarde. E perdi um baldinho vermelho. E fiz uma amiguinha na praia. Quer dizer, perguntei o nome, ela disse:”Simone”. Quando eu comentei que era nome de cantora e ela fez uma cara de imensa interrogação, entendi que eu sabia de coisas que as crianças que eu conheceria não sabiam. Eu nunca tinha ido para a escola e mesmo assim meu mundo era gigante. Na sala nós tínhamos coleções de livros, enciclopédias, livros para auxiliar nos estudos. Quando a gente dizia que não tinha nada para fazer, logo respondiam:”Vá ler um livro”. Viciei. E descobri coisas sobre a bauxita, o Império Otomano, sobre Ana Bolegna e gestação de inúmeros animais. Eu adorava descobrir o que comiam. Tinha um livro que tinha a figura do Tigre Dente de Sabre, que era algo que me hipnotizava. Eu tive um livro, “Meu primeiro dicionário ilustrado”, e nele, para cada letra haviam figuras. Tinha um dragão lindo, que me fez me apaixonar pela letra D. E eu quis chamar Violeta. A Tchone, na maior paciência, me ensinou a ler. Era uma professora atenta e exigente: enquanto não estivesse ótimo, nada feito. Eu lia de novo, e de novo e de novo. A Maria José também me ajudou nessa tarefa. Lia gibis e enciclopédias. Um dia achei por bem copiá-las. Com a mão doendo, desisti. A Cida foi uma figura curiosa na minha infância. Ela era cheia de amigos e jantares, saía para dançar e dizia que beliscão dava câncer. Teve a época de barzinhos e quando ela foi para o Rock in Rio e voltou cheia de histórias eu queria ficar ali, ouvindo tudo, como se tivesse feito parte da viagem. Foi ela que me levou viajar de avião a primeira vez, fomos ela, a Ju e eu. Foi maravilhoso olhar a vida de cima das nuvens. Acho que nunca agradeci a ela por isso. Quando ela limpava a casa toda era muito engraçado. Não estar por perto, isso era um drama, mas o método de limpeza dela contrariava qualquer manual. Ela começava todos os cômodos ao mesmo tempo, erguia tudo, esfregava com vigor. Era um momento de purgação, acredito. Quando íamos dormir e ela começava a contar de parentes era delicioso, segredos eram desvendados. Segredos para mim, que era criança, todo mundo já estava cansado de saber. Foi ela que me contou que a tia Orzina fugiu para casar. Como assim, a tia Orzina?É, fugiu. E dizia com orgulho o nome das empresas em que ela trabalhou e quando podia, levava a mim e a Juliana aos eventos para os quais era convidada. Me levou num bar da Henrique Schaummann, cheio de brilhos e néons. Me levou num casamento, numa casa no Broklin. E num churrasco, em Pirapora, onde a Ju e eu nadamos no Tietê, limpíssimo, e quase morremos afogadas. O bom da Cida é que ela ficava brava e ria logo em seguida, o que destruía a sua credibilidade. Enquanto moramos sob o mesmo teto, brigamos.Distantes, somos amigas. Há que se entender que misturar pessoas é tão nocivo quanto misturar bebidas... A Maria José me fez sua boneca, me levou aos seus passeios, me manteve por perto, me deu afeto, muito afeto! Ela gostava do Roberto Carlos e sempre teve uma letra desenhada e bonita. Ela me deu a Clarissa, minha eterna “bebeza”. Ela fazia vasos de epóxi e ouvia a rádio de Campinas depois do almoço. E fazia divinos beijos de mulata, que anos depois, durante a gestação do meu filho, desejei. Ela, docemente, me mandou um potão deles. Há quase 10 anos ela se mudou: foi morar em Porto Alegre.Acho que foi um dos dias mais tristes da minha vida.Neste dia, estive no apartamento em que ela morou alguns anos. Nada, cadê a mobília, os enfeites? Apenas um banquinho, e sobre ele um telefone. Nada. Vazia como o apartamento senti-me eu, diante do até mais. Eles todos verificavam a bagagem de mão, coisas a serem desligadas.Fiquei ali até o fim, quando se acomodaram no carro do Wilson e foram para o aeroporto. Voltei andando para casa, chorando. Não um choro discreto, para se chorar na rua. Um senhor choro, que me tremeu o corpo em soluços. Parei no velório municipal, escolhi um defunto menos favorecido por parentes e amigos a lhe darem adeus, e chorei toda a minha saudade antecipada ali, no funeral de um desconhecido. Saudade de quem acabou de ir dói diante da morte e diante da vida também. Já a Tchone era para se admirar em silêncio, de uma exuberância discreta. Tchone é um paradoxo. Uma rainha da bateria que usa roupas discretas, uma Brombal que fala baixo. E faz uma “união em espirais divina”. Me deu a chance de ver seus filhos pequenos e tê-los comigo nos fins de semana. Víamos filmes, jogávamos bola dentro da sala, íamos para praia. Quando a Lígia, sua filha, viu o mar pela primeira vez, eu tive a alegria de ouví-la suspirar e dizer:”O mar é lindo”. E me admirei quando o William aprendeu a falar “maçã”... Quando a Tchone estava preparando tudo para seu casamento, tudo parecia muito bom: o telefone que ela havia comprado para a casa nova e fora instalado no nosso quarto, os licores servidos para quem vinha entregar os presentes, minha roupa nova, de veludo vinho, sendo feita...eis que chegou o dia. Percebendo que ela iria embora para sempre, decidi sabotar o casório: me tranquei no banheiro e lá ficaria. Tudo muito lógico para mim: daqui não saio, daqui ninguém me tira, ninguém vai para o casamento e pronto, a Tchone não vai mais embora. Dois chutes na porta e seu consequente arrombamento consumado depois, me conformei com tudo e fui para a igreja, desejando que ela fosse muito feliz. Uma pessoa tão doce deveria ter esse direito garantido por lei. Como a Graça deveria ter assegurado o direito de ter todas as cores e nuances de fios de linha possíveis. Elas merecem! A Graça é a praticidade em pessoa. Resolve qualquer problema e ainda serve um café. E faz mistério com as situações, o que eu acho incrível, num bom sentido. Sabe, negociar a informação com a curiosidade do ouvinte? A Graça faz isso de uma maneira tão bacana, parece uma história em capítulos. A admiro por isso, sinceramente e sem nenhuma ironia. E por tanto admirá-la, incluindo como cozinheira, fui para o hospital, de tanto comer a comida da Graça. O erro foi meu, de achar que o mundo iria acabar e era preciso estocar as delícias culinárias terrenas dentro da minha barriguinha. Tudo começou numa linda manhã de verão. O Roberto, marido da Graça, estava em casa e me chamou para andar de bicicleta. Andamos, andamos, andamos. Era dezembro, dia quentíssimo. Chegando em casa, sem qualquer hesitação, me joguei na piscininha, onde estavam o Júlio e o João, meus sobrinhos e a Ju, minha sobrinha-quase-irmã. Choque térmico tomado, nos sentamos para comer: eu devorei toda uma panela de couve. Nada sobrou, comi tudo, tudo, tudo. E tenho certeza, que se houvesse mais, comeria mais. Depois do almoço, com a cabeça sob o Sol, sentei e comi também uns pedaços de melancia. Devo ter voltado para a piscininha com tudo aquilo ainda recém mastigado, porque o juízo faltou feio neste dia. À noite veio e com ela o resultado de toda a minha extravagância. Tudo presenciado pelo João, que por essa época dormia pouco e decidiu cuidar de mim. Carinhosamente ele pegou um pano num balde, um pano de chão sujo digamos, e como vemos em filmes como “E o Vento Levou” na cena do parto de Scarlet O´hara, torcia o pano na minha cabeça para me reconfortar: um bom menino esse João. Passei bem mal e claro jurei para mim mesma nunca mais fazer essas coisas, como juram as pessoas que fizeram grandes burradas. Fui parar no hospital e a Graça cuidou de mim. Como cuidou também do José, meu filho, assim que ele nasceu. E de mim, novamente, quando uma grave icterícia quase o levou, dias após seu nascimento...foram dias de dor e aprendizado. E minha irmã esteve sempre ao meu lado, com uma força descomunal, forte por mim e por ela, acredito. Ela me ensinou a gostar do Quarteto em Cy e de Tim Maia. No Natal de 1986, ela fez um almoço em sua casa: nesse dia entendi que mesmo sem nossa mãe por perto, não nos desuniríamos. E um dia a vi triste, cansada. Um absurdo a Graça estar triste e desanimada. E então criamos o famoso “Chá das Marias”. No primeiro encontro, foi assim nomeado. Nos reunimos para ver a Graça sorrir novamente e depois notamos que nos reunirmos nos deixava todas felizes...pena que a Graça não nos acompanhou no primeiro chá que fizemos na praia. Mas a vida é longa, e sempre teremos água sendo fervida, para chá, para café...ou em gelos, para a caipirinha ou os drinks que a Cida prepara. Depois, tem o Paulo. Ele saiu de casa cedo, passou num concurso do Banco do Brasil e foi morar em São Paulo. Intelingentíssimo, conhecedor de boa música e bom motorista. Adorava quando ele vinha para casa e nos levava dar uma volta no seu Passat caramelo. E corria, íamos cantando para os outros motoristas: “clube dos lerdinhos, clube dos lerdinhos!”, rindo, e o friozinho na barriga nas retas aceleradas. Ele ficou com a caixinha de música da mamãe: nada mais certo para que Paulo herdasse – música e movimento. Ele escreveu um livro de poemas e eu achei o máximo quando o ator e teatrólogo Paulo Autran lhe escreveu, elogiando sua obra. Para mim, foi como se alguém, que não fosse nosso familiar, tivesse atestado que ele era bom no que fazia, que o que ele expressou era relevante para alguém que não tinha nada a ver com ele. Uma opinião imparcial, digamos. Eu quase matei o Paulo do coração.É notório e sabido que o tio Luiz é como um pai para nós também. Pois numa noite da minha infância, o tio Luiz da turma da tia Angelina faleceu.Todos de casa foram ao velório e me deixaram bem bonitinha, sentada na sala, no banquinho quadrado com a recomendação de avisar quem chegasse do ocorrido. Uma tarefa mais que fácil. A casa escura e eu ali, no meu lugarzinho, pensando em tantas coisas quanto uma criança pensa na sua solidão e eis que chega o Paulo. Fiquei tão feliz de poder cumprir uma tarefa daquela seriedade que mal ele entrou, estranhando o silêncio e a penumbra foi logo perguntando o que aconteceu. - O tio Luiz morreu. - Morreu? – perguntou um Paulo perturbadíssimo! - É, morreu. Foi todo mundo no velório e me mandaram ficar aqui pra te avisar. – respondeu uma Cláudia que não entendeu o drama. Drama mesmo foi quando a mamãe e eu fomos receber os móveis da casa nova da Saléte: chegou a estante, isso, aquilo vocês colocam ali...tudo ia bem, até que a mamãe resolveu descansar, sentando sobre o estrado da cama. Devo esclarecer que não foi a mamãe, foi o estrado de má qualidade que ocasionou tudo. Ela entalou e eu não conseguia tirá-la dali. Ríamos e perdíamos a força. Sabe quando ri e fica mole? Nós duas, rindo muito e sem conseguirmos resolver nada. Mas tem situações que não acontecem para serem resolvidas, acontecem para serem lembradas. Anos depois foi a vez da Salete me ajudar com meus móveis. Num verão de sonhos e projetos, reformamos alguns. Ela, o Henrique e eu lixamos, pintamos e envernizamos. A cor azul pintou estes dias e na rádio tocava “Girassol”, da banda Cidade Negra. Sempre que ouço esta canção, esses dias felizes me retornam. A Sá muito caprichosa, muito querida, muito organizada. Toda esta parte ficou para ela, uma pessoa que tem arquivos em ordem cronológica e gerencia um banco, uma família e dobra roupas íntimas com esmero. Sabe aquele filme em que o Danny de Vitto é irmão gêmeo do Arnold Schwarzenegger? Pois na história um é alto, atlético, charmoso e outro é um arremedo de gente, seguindo as características dos atores. Eles se completam, como acredito que seja comigo e minha irmã: eu a bagunço e ela me organiza. Tenho tal falta desse gene, que se fosse coveira enterraria a pessoa na gaveta errada. Já o que determina o drama, esse veio em partes iguais para a Ana e para mim. Talvez por isso nos entendamos tão bem. Talvez por isso o Fábio, seu filho mais velho, tenha declarado ser eu sua madrinha do coração. Tanto talvez e nenhuma certeza, como quando colhíamos margaridas para intermináveis bem-me-quer-mal-me-quer, quando conversávamos no banheiro, quando ela apertava os olhos para mais uma tragada do cigarro fumado no fim do dia, antes dela preparar o jantar... A Ana me lembra o degrau da horta, cheiro de terra molhada e da sua torta de banana, deliciosa e quentinha. Da sua letra bonita, escrevendo receitas com o Jair. Lembro do meu primeiro dia de aula: fui chamada para o pré duas semanas após as aulas terem iniciado, por conta do meu aniversário ser no final de outubro. A Ana foi encarregada pela mamãe de me arrumar, neste dia tomei banho na parte da manhã, o que era incomum, pois brincávamos o dia todo e no fim do dia a mamãe me colocava “de molho”, na bacia de alumínio, para então ficar pronta e esperar o papai chegar do trabalho. A Ana me penteava e dizia que a professora me adoraria. Eu fui pra escola feliz, ia ter amigos novos. Ter uma lancheira, meu uniforme...Na minha formatura do pré, lembro de estar no palco, de beca vermelha, recebendo meu diplominha das mãos da professora Heloísa e ter visto minha mãe ali, me aplaudindo. E quando entrei na quinta série, foi também a Ana que preparou todo meu material. Ela encapou tudo com um plástico azul escuro, de coraçõezinhos brancos, etiquetou tudo. E quando a mãe da Élide, vizinha da família, faleceu, a Ana fez uma torta de batata com carne moída que eu amo. E também fez lingüiça tipo Josefina quando a Lídia, prima da mamãe, morreu. A Lídia tinha uma perna amputada. A Ana serviu as lingüiças dizendo que eram a perna da prima. Como muitas vezes disse outras coisas malucas e outras tantas coisas sensatas. Me ensinou tanto sem nada dizer também. Ela curtia Caetano e pintou uma tela de um gato, com pedrarias. E tocava violão: quase “uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel”. Ainda no pré, a dona Heloísa mandou a turma desenhar suas famílias. Eu perguntei: - Todo mundo, tia? - Não, só seus pais e irmãos. Ah sim, quase ninguém para ser desenhado. Desenhei todo mundo. Lembro da especial atenção que tive em desenhar o All Star do Maurílio, um azul de cano longo. Fiz os ilhoses, a ponta clara, o logotipo...perdi o recreio, mas nem me importei. Queria fazer bem feito, fiz uma chuva começando a cair, gotas grossas de uma nuvem em cima do telhado. A professora se intrigou, foi ver que tanto eu desenhava. Coloquei os nomes todos no meu desenho, ela achou o máximo. Aí eu contei que sabia ler, virei ajudante dela. O Maurílio me buscava todos os dias, e me levava sempre. Eu saía e subia para a quadra, esperá-lo terminar seu jogo de basquete. Depois a gente vinha, os amigos dele todos junto, conversando, rindo...o Mau me ensinava a andar direito, como uma menina. Até então eu era muito moleca, precisava me portar melhor. Ele falava numa boa, “não balança o braço assim”, “coluna retinha”. Ele tinha uma camiseta comunista, isso em 1982, “Solidariedade à Polônia”, escrita em polonês. Tinha roupas new wave quando todos assistíamos “Armação Ilimitada” e ouvíamos rock paulista. Ele gostava de assistir ao programa TV SOM, na TV Cultura. Contavas histórias exageradas, mas contava assim para torná-las mais interessantes...já o Zé gostava de programas de animais: se tornou biólogo. Quando éramos pequenos, não brincamos muito. Quando crescemos, a vida nos separou. Ele foi estudar em Campinas e eu tinha minhas amigas, o telefone que tocava insistentemente, coisas que tornam as pessoas diferentes umas das outras. Mas às vezes, pequenas coisas, mesmo que num momento as desunam, noutro têm o poder de colocá-las próximas. Lembro de quando fui ao show da Madonna em sua primeira passagem pelo Brasil: o Zé tinha um Scort e me levou ao Morumbi Shopping para que eu comprasse meu ingresso. Fomos conversando, eu numa alegria absurda, feliz com o meu pequeno milagre realizado...e o Zé, alheio à Madonna, mas presente neste dia. Como quando fiz 20 anos e dei uma festa bem pequena para alguns amigos, que passaram em casa antes de sairmos para dançar. Ele veio de algum lugar, entrou, deu um abraço sincero e sumiu, seguindo o script de um irmão bacana, que não interfere na festa da irmã. Entre o Zé e eu, o Plínio, meu grande companheiro de infância, de joelhos ralados e pé no chão. O Plínio sempre foi muito criativo, fabricava pistas de autorama inacreditáveis, mesas de pinball feitas com restos de madeira do papai, trilhos para bondinhos...líamos juntos, brincávamos juntos, nos uníamos “contra” a Ju, inocente nessa rivalidade infantil. Ele teve peixes, uma ave colhida num temporal chamada Melóspede e os gatos Leco e Leleco. Depois uma criação de passarinhos. E um buggy amarelo. Ainda crianças tínhamos os jogos de ping pong na mesa da cozinha. Foi na mesa da cozinha também que ele gastou toda uma borracha verde escrevendo, como a banda imortalizou, KISS. A Ana não achou a menor graça, ela tinha acabado de limpar tudo.Era em cima dessa mesma mesa que brincávamos de luta livre, como nos programas de TV. Um dia, depois de um golpe no meu olho direito, me fingi de cega: dizia com uma voz entre doce e desesperada “Irmãozinho, cadê você? Não consigo te ver? Onde está a luz?”, puro drama... É por minha causa que ele tem uma cicatriz próxima ao olho, porque eu brinquei com uma sombrinha próxima demais dele e enfiei a vareta no seu rosto. Por causa dele aprendi inglês sozinha, de pirraça, porque um dia eu pronunciei rabbit como “rabíte”. Quando me mudei de casa, ele me escreveu uma carta de despedida que guardo até hoje e me deu um jacá. Um jacá que levei com orgulho, na mudança que ele me ajudou a fazer. Ele foi o primeiro da família a saber que eu seria mãe. Ele batizou meu filho. Brigamos e fizémos as pazes, rimos juntos e choramos em silêncio. Como todos os outros, como cada um em especial, que partilham comigo o mesmo pai e a mesma mãe...como todos que um dia pisaram no cimento quente do quintal, que um dia colocaram o calço no carro do pai, que um dia gravaram algo com a orientação do tio Luiz...como todos que choraram num novembro triste, que comeram o almoço de domingo ao redor da mesma mesa. Como todos os meus irmãos: somos o que vivemos. Maria Cláudia Agosto de 2009.

Um comentário:

Rober disse...

Que história fantástica. Adorei o "rabíte" hauahau

Bjoks